Quer fazer medicina? Então leia isso.


 

A maioria das pessoas é muito iludida a respeito da medicina. Falo isso por causa própria; embora tenha acertado em vários aspectos na minha escolha pela medicina, estaria mentindo se dissesse que não me frustrei com muita coisa após formado. Quisera eu ter tido alguém com certa vivência e paciência para explicar mais sobre a profissão ANTES de ter ingressado na faculdade.

É o que pretendo com esse texto: Desmistificar a medicina e situar cada um que está pensando em encarar essa empreitada. Um texto voltado para o vestibulando de medicina. Perguntas e resposta objetivas, feitas para jovens ansiosos e diretos. Espero que gostem.

Para fazer medicina, a pessoa deve ter um dom?

Re: Não. É claro que algumas pessoas possuem algumas qualidades que poderão facilitar seu desempenho na profissão, assim como outras podem possuir características que impossibilitem o exercício da mesma, como medo de sangue, por exemplo, mas em linhas gerais, o que se precisa para ser um bom médico é treinamento.

 

Quem faz medicina, é muito inteligente?

Re: Não necessariamente. Até algum tempo atrás, quando a oferta de vagas era limitada, poderíamos considerar quem fazia medicina com uma inteligência acima da média, mas hoje em dia, com tantas vagas, eu diria que basta ter certa disciplina, empenho e perseverança, que se chega lá. O vestibulando tem que saber que normalmente são dois a três anos tentando, sem garantias de que vai dar certo. 

 

Por que as pessoas fazem medicina?

Re: Pelo mesmo motivo que as pessoas fazem engenharia, direito, arquitetura, agronomia, etc. Fazem medicina para ter uma profissão, e seguem os mesmos critérios que todos seguem para escolher suas profissões: Aptidão, facilidade, admiração pelo ofício, condições do mercado, possibilidade de boa remuneração, para herdarem o legado dos pais, etc. 

 

E o tal juramento? E a história do sacerdócio?

Re: O Juramento de Hipócrates geralmente é feito por todos os formandos em medicina, porque faz parte da solenidade. Ele tem valor histórico, simbólico, ético e moral. Apenas isso.

O Sacerdócio é uma autoridade e poder concedidos por Deus. O exercício da medicina é concedido por leis e entidades, e não há qualquer poder concedido, mas sim técnica adquirida por estudo e treinamento. Logo, sacerdócio não tem qualquer aplicação na área médica.

A finalidade deste termo é a mera romantização da profissão, e seu grande problema é que dá uma falsa ideia de que o médico deve trabalhar de graça, a toda hora, em quaisquer condições, etc. Não há qualquer lei ou parte do Código de Ética Médica que remetam ao médico trabalhando como sacerdote ou filantropo. Nem no famigerado juramento encontramos esse disparate. Essa cobrança é parte da demanda dos pacientes, nada mais.

 

Depois que se forma em medicina, é obrigatório fazer alguma especialização?

Re: Não. Você pode trabalhar como “clínico geral”, em prontos-socorros, pronto-atendimentos, ambulatórios e na Estratégia de Saúde da Família (ESF). Também pode entrar nas Forças Armadas como voluntário e assim permanecer por até nove anos. Vale salientar que essas opções não são nada recomendadas, dadas as circunstâncias atuais da medicina e da saúde no Brasil. Já faltam empregos nessas áreas, o trabalho vem se tornando cada vez mais exaustivo, e a remuneração tem diminuído consideravelmente. Nove em cada dez médicos considera péssima a ideia de trabalhar como clínico geral, e é por isso que quase todos acabam buscando alguma especialização.

 

Como os médicos tornam-se especialistas?

Re: O caminho mais comum, mais desejado e mais recomendado é a Residência Médica. Você ingressa através de um concurso, fazendo uma prova tão ou mais difícil que o vestibular para medicina. A dificuldade é tamanha, que para passar os médicos são quase que obrigados a fazerem cursinhos preparatórios, que custam cerca de R$1000 ou mais por mês.

Na residência médica você trabalha teoricamente 60 horas semanais. Em algumas menos, e na maioria mais que isso. Também recebe uma bolsa mensal de R$3.330, que com descontos fica em torno de R$2.960. Você tem trinta dias de férias por ano e não tem décimo terceiro salário.

Para algumas especialidades, basta fazer uma residência, para outras são necessárias duas ou três residências. Para cada uma, uma prova semelhante ao vestibular. É normal que após formado um médico passe mais 2 a 6 anos, ou até mais, se especializando.

Outro caminho para tornar-se especialista é através da realização de Provas de Títulos. São provas aplicadas pelas sociedades brasileiras de cada especialidade. O médico tem que comprovar experiência na área e atender a alguns pré-requisitos para poder fazer tais provas, como ter trabalhos publicados, etc. É um caminho alternativo, mas legítimo.

Existem muitos médicos que fizeram apenas pós-graduações e cursinhos, e que saem por aí se dizendo especialistas. Na verdade são picaretas, desonestos, e devem ser denunciados aos Conselhos Regionais de Medicina. Para se dizer especialista, o profissional deve ter feito residência médica ou prova de título. Não existe outro meio.

 

Quanto tempo para que um médico se forme e comece a trabalhar?

Re: Esse tempo é bastante variável. Vamos dividir em partes a resposta…
A) Para trabalhar como clínico geral: Some os anos tentando entrar na faculdade com os 06 anos de curso. Lembrando que esta não é uma boa opção.
B) Para trabalhar como especialista: Considerando que você passe no vestibular e na residência de primeira, e que faça apenas uma residência que não tenha subespecialidade, na melhor das hipóteses serão 09 anos para entrar no mercado de trabalho. Em algumas especialidades, hemodinâmica e cardiologia intervencionista, na melhor das hipóteeses, serão 12 anos. Em neurocirurgia, sendo otimista, 11 anos.
C) Suponhamos que você queira se especializar e não seja superdotado ou gênio: Vamos vamos considerar uma média:
– 02 anos para passar no vestibular
– 06 anos de faculdade
– 02 anos para passar na(s) residência(s)
– 04 anos ao todo de residência(s), em média
TOTAL: Cerca de 14 anos
 

Médicos ganham bem?

Re: Sim e não. É verdade que os rendimentos dos médicos estão acima da média dos outros profissionais, mas é porque trabalham em jornadas exaustivas de até mais de 100 horas semanais, bem maiores que as usuais 40 horas semanais dos demais trabalhadores. Se formos considerar o valor da hora trabalhada, constataremos que a remuneração geralmente é razoável e até ruim.

Alguns pontos importantes: Médicos ricos, que ganham muito bem, são a minoria… Mas também nunca vi médico pobre. A maior parte fica na classe média e média alta, se matando de trabalhar.

 

Por que médicos sempre trabalham demais?

Re: Médicos conseguem trabalhar o quanto quiserem. Isso é possível devido à possibilidade que o médico tem de acumular empregos, e em todos os horários e dias imagináveis. Parece óbvio, mas vale a pena salientar que ninguém os obriga a trabalhar demais. Se você conhece um médico que trabalha exaustivamente, na maioria das vezes é porque está juntando dinheiro e investindo (opção dele), ou está se matando para manter certo padrão de vida. Dificilmente esse trabalho todo será para sustentar dez filhos ou para manter o tratamento caríssimo de um familiar com uma doença rara. O trabalho excessivo é uma escolha comum, que a maioria dos nossos doutores fazem.

Um ponto importante é que quase todos os médicos trabalham como autônomos, sem carteira assinada e com péssimos concursos públicos. Isso faz com que a maioria tenha que guardar uma boa parcela da sua renda para previdência privada ou para constituir patrimônio, para que tenha sua “aposentadoria” e segurança no futuro. Isso gera mais trabalho, mas não justifica a pessoa se matar em vida para ter certo conforto perto da morte… Talvez com uma vida mais simples não precisassem dessas jornadas estafantes e malucas. Bem, é a minha opinião! Há quem ache legal, bonito ou aconselhável passar a vida toda trabalhando sem parar. Cada um escolhe seu destino.

 

Médicos são obrigados a dar plantões noturnos e nos finais de semana?

Re: Não… Mas, na prática, em grande parte das vezes, sim!

Imagine que você vai entrar num emprego novo. Não espere que estará vago o melhor plantão diurno te esperando. Você provavelmente vai começar pela noite e pelos finais de semana.

Você é cirurgião e quer trabalhar num hospital. Eles te falam que as portas estão abertas, mas que você terá que entrar na escala de plantões, incluindo os noturnos, nos finais de semana e feriados.

Você passou num concurso de 20 horas semanais. Basta um plantão de 24 horas por semana e já estará cumprida sua carga horária. É tentador, não?

Em alguns meses seu consultório é cheio, em outros é super vazio. Diante dessa instabilidade, você arruma alguns plantões para fazer para ter um dinheiro certo todo mês, para não passar apuros.

Você é anestesista e entra em algum grupo. Agora é o mais novo! Adivinha quem irão colocar nos finais de semana, a noite e feriados!?

Enfim, alguns plantões são inevitáveis, outros são tentadores, e outros vem a calhar. A verdade é que fazem parte da vida da maioria dos médicos. Escolha bem sua especialidade e você talvez consiga fugir deles!

 

E os concursos para médicos?

Re: A grande maioria dos concursos públicos para médicos são uma vergonha: Péssimas condições de trabalho e péssima remuneração. Um concurso para um médico é apenas um dos três ou quatro empregos que ele tem.

 

Por que tanta gente quer medicina?

Re: Porque a profissão foi excessivamente romantizada e glamourizada, e porque, de fato, durante muito tempo ser médico foi sinônimo de dinheiro, status, respeito, admiração, etc. Muitos pensam que ao optar pela profissão, estarão fadados ao sucesso em todos os aspectos.

 

A medicina é uma profissão especial?

Re: Sim. É uma profissão diferente, lida diretamente com o que há de mais precioso, a saúde e a vida. O médico trabalha contra a dor, o sofrimento, a ansiedade, a angústia e contra os sentimentos mais complexos que o ser humano possa ter. É, sem dúvida, uma profissão especial.

 

Por que existem tantos médicos ruins?

Re: Pelo mesmo motivo que existem engenheiros, cozinheiros, secretárias e veterinários ruins. A diferença é que o médico aparece mais porque lida diretamente com vidas.

Vale destacar que muitas vezes algo dá errado não pelos médicos serem ruins, mas por estarem trabalhando sem condições adequadas. Quando se fala em “erro médico”, em grande parte das vezes estão falando também de erros de outros profissionais. Outra coisa; é comum médicos serem avaliados erroneamente e caluniados por leigos ou pessoas de má fé. Para finalizar, ainda existe a grande possibilidade de não terem cometido erro algum, pois fatalidades acontecem.

PS: Um agravante nessa questão da qualidade médica é a abertura de uma enorme quantidade de escolas de medicina nos últimos dez anos. Grande parte colocadas para funcionar sem o menor critério e controle de qualidade. Resultado: Mais profissionais ruins no mercado.

 

Por que médicos em geral são estressados e reclamam tanto?

Re: Muitos são estressados (1) por trabalharem demais, (2) porque as pessoas esquecem que eles também são humanos e, portanto, tem suas limitações, e (3) porque exercem uma profissão especial, complexa, e geralmente só colhem o ônus desta empreitada: São cobrados exaustivamente quanto à agilidade, disponibilidade, eficiência, amorosidade, paciência, compreensão, empatia e tudo que possam imaginar, mas jamais são recompensados à altura. Acontece justamente o contrário: As pessoas exigem tanto e cobram tanto, que ao menor sinal de descontentamento, caem em cima com reclamações, cobranças, processos, etc. A vida do médico é estressante na maioria das vezes. Não importa o quanto digam o contrário, não caia nessa.

 

E qual a parte boa da medicina?

Re: A medicina é encantadora, desafiadora, e resulta em grande satisfação pessoal. É muito boa sensação de ter salvo uma vida, impedido uma sequela, curado uma doença, ou simplesmente de receber a gratidão dos pacientes e familiares. A medicina ainda gera, embora pouco, certo respeito e admiração. Quanto à renda, ela ainda te permite ascensão social e patrimonial; ela ainda pode ser considerada certa garantia de segurança e estabilidade financeira, embora em níveis bem menos elevados que noutros tempos. Outra coisa: A profissão ainda te garante segurança, tranquilidade e inúmeras facilidades para lidar com sua própria saúde e com a de familiares e amigos. Costumo dizer que todo médico tem um “plano de saúde especial” em decorrência da profissão.

 

Você se arrepende de ter feito medicina?

Re: Não… Mas acho que é porque eu já fiz! (rs) Se eu pudesse voltar atrás levando comigo toda a experiência que tenho, não sei se teria coragem para encarar essa jornada até aqui. Hoje eu vivo bem e sou muito feliz graças à minha profissão, mas já passei por muita coisa que preferia não ter passado.

Já perdi as contas das vezes que fui agredido verbalmente, ameaçado, desacatado, desrespeitado. Já levei tapa na cara, já fui empurrado e ameaçado com arma. Já me denunciaram várias vezes no CRM sem motivo justo, já me expuseram em redes sociais, já me processaram… Já fui vítima de assedio moral e ameaças por gestores e empregadores. Já larguei uma residência por causa da exploração e desrespeito com que alguns serviços tratam os residentes. Sem mencionar os inúmeros calotes e os constantes atrasos de salários.

Eu tenho traumas e péssimas lembranças que levarei para o resto da vida, mas tenha em mente que esse foi o meu caso. Para outras pessoas os caminhos foram mais fáceis e as experiências melhores. Não aconselho que levem em conta esse meu desabafo para a escolha do seu futuro. Desconsiderem esse item. 🙂 

 

Vale a pena fazer medicina hoje em dia?

Re: Se a pessoa fizer medicina iludida com o glamour, sacerdócio, juramento, status, vida fácil, pouco trabalho, achando que vai ficar rica e toda essa conversa fiada, dou 100% de certeza dela desistir ou se frustrar.

Aquele que quer fazer medicina tem que saber de fato onde está pisando, onde está querendo entrar, e o que vai encontrar pela frente. Era o que eu pretendia passar com esse texto! Feito isso, somente ele poderá responder se vale a pena ou não fazer medicina. 

Boa sorte!


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