Por que o médico não quer ir para o interior e/ou PSF?


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Por que o médico não quer ir para o interior? Por que o PSF não funciona? É o que pretendo responder.

Apos ter me formado em medicina pela UFRN, em agosto de 2007, trabalhei seis meses no Programa de Saúde da Família (PSF) de Santana do Matos (RN), cidadezinha há 200km de distância de Natal e com aproximadamente 20.000 habitantes. Em 2008, fiquei três  meses no PSF de Nísia Floresta (RN), cidade praticamente conurbada com Natal, com 23.000 habitantes. Por útlimo, em 2013, fiquei um ano em Goianira (GO), há 35km de Goiânia, com seus 37.000 habitantes.

Essas três péssimas experiências não foram fruto de azar: Se cidades tão distantes apresentam os mesmos problemas relativos ao programa, é porque realmente tem coisa errada aí, e é isso que quero mostrar nesse texto. O programa não funciona como deveria, e nem vai funcionar.

Separei em tópicos para ser bem objetivo… Estão aí os problemas!

1 – Remuneração: Por mais que as pessoas achem que o salário de um PSF é bom, elas devem ter em mente que, em geral, médicos, mesmo os recém-formados, tem a opção de ganhar a mesma quantia ou mais nas capitais ou arredores;

2 – O médico é uma pessoa como qualquer outra: Ele tem família, amigos e gosta de uma vida que dificilmente vai encontrar no interior. Sem mencionar que ao se mudar, terá que pensar no emprego da esposa, na escola dos filhos, nos cursos de inglês, aulas de natação, e todas essas coisas que todos vocês desejam para suas famílias e que dificilmente encontrarão no fim do mundo;

3 – Falta de garantias contratuais: Acordos meramente verbais ou contratos que possuem cláusulas que eximem o contratante de várias obrigações. Os contratos do “Mais Médicos” e do PROVAB, por exemplo, são um absurdo. Não existem quaisquer garantias, o contrato pode ser anulado a qualquer momento caso seja interessante para o contrante, sem considerar “justa causa” ou qualquer coisa do tipo;

4 – Não cumprimento das leis trabalhistas: Se um médico(a) adoecer por um período considerável ou caso engravide, por exemplo, além de não receber, vai pro olho da rua. Sem mencionar que não tem décimo terceiro salário e outros direitos diversos;

5 – Falta de estabilidade: Podendo levar calote e/ou ser demitido a qualquer momento, dificilmente um médico vai virar sua vida do avesso se mudando para o interior;

6 – A falta de interesse dos médicos que estão no PSF: Devido a todos os problemas apontados nesse texto, com razão, a grande maioria dos médicos não quer ser médico da família! Encaram o programa como um trabalho temporário, como uma forma de fazer um pé de meia antes de ingressarem na Residência Médica. O fato de ser emprego provisório, faz com que a maioria evite desgastes deixando de lutar por melhorias;

7 – Condições precárias das unidades de saúde: Em geral são casas humildes que foram adaptadas. As que foram construídas para este fim, quando são razoáveis, duram poucos meses sem a devida manutenção;

8 – Falta de mobília e equipamentos e materiais básicos: Mesas velhas e enferrujadas, cadeiras e macas quebradas, falta de otoscópios, negatoscopios, balanças, réguas, ar-condicionado, projetores, etc;

9 – Muita demanda por unidade de saúde: O governo coloca uma única equipe do PSF, com um único médico, para cobrir 3.000 a 4.000 pessoas. Impossível fazer um trabalho de prevenção e assistência com esse número de pacientes.

10 – Falta transporte para as equipes realizarem as visitas domiciliares: Geralmente 01 ou 02 carros em péssimas condições, que vivem na oficina, para dar suporte a cinco ou mais equipes;

11 – Falta de segurança: Quase nunca existem funcionários responsáveis pela segurança da equipe e dos seus bens. Em todos os PSFs temos que lidar com criminosos, drogados, pacientes psiquiátricos e todo tipo de gente. Agressões verbais, físicas, ameaças, carros arranhados e com retrovisores e vidros quebrados são comuns;

12 – Qualidade dos medicamentos: Os que são distribuídos nas unidades são poucos e bastante defasados. O médico tem que fazer milagre ou simplesmente fingir que está tratando a doença;

13 – Falta de medicamentos: Os estoques quase sempre estão vazios e a reposição pode demorar semanas;

14 – Falta de material para os pacientes: O governo raramente disponibiliza, por exemplo, aparelhos para aferição da pressão arterial e da glicemia. Quem já tentou compensar um hipertenso e diabético no PSF sabe bem como a missão é quase impossível;

15 – A falta de saneamento básico: Muitas cidades ou bairros não  tem água tratada, ou tem esgoto a céu aberto. Some isso a uma população carente, que não tem a menor noção de como são transmitidas as doenças, e teremos uma missão quase impossível;

16 – A cultura da medicina curativa: Gasta-se muito mais tempo medicando do que prevenindo doenças.

17 – O pensamento dos gestores da saúde pública: Eles, em geral, não querem que a saúde da população melhore. Querem apenas votos. Para a prefeitura, médico bom é aquele que faz tudo que a população pede, mesmo que isso não resolva o problema, que seja absurdo e que gere filas enormes para exames e encaminhamentos. Para eles, medico bom é aquele que solta tarja preta sem nenhum controle e que dá atestado pra todo mundo. Tudo vale desde que a população não reclame;

18 – A aversão ao médico que tenta fazer o correto: Esse médico, que solicita melhorias, que anota tudo no prontuário, que gasta tempo examinando e explicando, que prescreve a medicação e pede exames apenas quando necessário, causa insatisfação e não consegue atender a enorme quantidade de pacientes. Ele se torna uma dor de cabeça para os gestores. Com o tempo, ou ele se rende ao sistema, ou sai;

19 – O jeitinho brasileiro: A cultura do encaixe e do favorzinho, associada à máxima do “eu que pago seu salário”, geram um problema enorme na unidade. Muitos pacientes pedem para que sejam renovadas receitas médicas sem que o paciente seja consultado, solicitam exames para parentes ou amigos, atestados absurdos, etc. Se o médico faz, corrompe o sistema. Caso se negue, passa a ter dores de cabeça e a correr riscos;

20 – Filas: São meses ou anos para conseguir um exame, cirurgia ou consultas com um especialista;

21 – Alta rotatividade de médicos: Todo ano é um entra e sai de médicos. Acompanhamentos são descontinuados, condutas são modificadas, tratamentos são reiniciados e sincronia com a equipe é perdida.

22 – A inexperiência dos médicos: O programa recebe muitos médicos bons, mas sem experiência, para atuar em condições que a maior das experiência já seria pouca;

23 – O sistema seleciona os profissionais: Diante dessa realidade, quem se sujeita a continuar, o faz se adequando ao sistema, sendo conivente com os absurdos. De uma forma ou de outra, ele acaba corrompido, e a situação se perpetua.

Enfim, imagino que existam exceções. Acredito que algumas unidades tenham programas satisfatórios e que cumprem sua proposta, mas são uma raridade. O geral é isso que acabei de falar: Um programa falho, paliativo, que não resolve problema algum.

E A SOLUÇÃO?
Isso é assunto para outro texto…

Solon Maia
Médico e cartunista autor do blog Meus Nervos
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