Meus Nervos entrevista – Dr. Marcelo Caixeta


Dando início à coluna de entrevistas do Meus Nervos, temos a honra de conversar um pouco com o ilustríssimo Dr. Marcelo Caixeta. Há anos que acompanho seus textos na internet. Sou seu fiel leitor e grande admirador, o que me deixou ainda mais honrado e grato pela oportunidade. Aqui falaremos um pouco sobre a psiquiatria, sobre o perfil psiquiátrico do médico brasileiro, sobre política, medicina como um todo e muito mais. Espero que gostem!

Marcelo Caixeta

O Dr. Marcelo Caixeta nasceu em 1963, tendo morado no interior de Goiás, em Itumbiara, até seus 16 anos. Filho de um dentista, Dr. Heleno Caixeta, com a dona de casa Naruna Ferreira, formou-se médico pela UFG em 1986, se especializando em psiquiatria pela USP e Universidade de Paris XI. É um dos fundadores  da instituição filantrópica ASMIGO, que atende crianças e adolescentes com problemas psiquiátricos graves. Sempre se dedicou a atividades científicas diversas, já tendo publicado 13 livros médicos, além de vários artigos científicos em revistas especializadas e livros técnicos. Um destes livros, “Psicologia Médica”, já na segunda edicação, é  adotado em várias Faculdades de Medicina no país. Atualmente escreve para o Jornal Diário da Manhã e publica textos diversos na internet, com temas diversos, mas geralmente relacionados à medicina dentro dos mais variados contextos.

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Dando início à entrevista, falemos um pouco sobre sua especialidade. O senhor acha que a psiquiatria ainda é  rodeada por muito preconceito? Ou acha que as pessoas estão mais informadas e abertas quanto ao diagnóstico e tratamento de doenças mentais?

As pessoas estão um “pouquinho” mais abertas, por exemplo, a classe média , hoje, já sabe que “depressão, ansiedade” ( e não só “loucura” ) se tratam com médico psiquiatra. Mas, não podemos tampar o sol com a peneira, o preconceito é enorme, e, infelizmente, ao meu ver , continuará sendo. Isto porque a formatação da especialidade, ao meu ver, é mal-desenhada. É desenhada para ser , sempre, uma especialidade que “lida com loucos”, desequilibrados, drogados, criminosos,  impulsivos, pervertidos,  falhos de caráter, e ninguém quer ser qualificado como tal… Por outro lado, lida com o cérebro, um órgão que é cada vez mais apropriado, assenhorado, pela neurologia (  que hoje – justificando que são “doenças cerebrais’ –  já se ocupa de doenças que antes eram do âmbito da psiquiatria ).  O paciente prefere muito mais dizer que tem um “problema no cérebro” do que  dizer que “é um doente mental”. Ninguém tolera isto.

Por esta e outras, no hospital onde trabalho, não há placas de nada ou ninguém dizendo que se trata de “psiquiatria”, pois isto espanta a maioria dos clientes.  Somos como a “Geni” da música do Chico Buarque : eles nos procuram só na calada da noite,  só quando “ninguém mais os quer”, só quando todos os recursos foram esgotados, tanto as reservas psicológicas quanto também, de modo geral, as financeiras….

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Alguns profissionais são sabidamente mais acometidos por doenças como depressão, ansiedade, estresse e burnout. O médico é um desses profissionais? Quais os diagnósticos mais prevalentes na nossa classe?

É uma pergunta muito interessante, muito profunda. Vários capítulos de nosso livro “Psicologia Médica” são dedicados a ela. A Medicina, até há pouco, era muitíssimo disputada em vestibulares, era um curso muito difícil, exigindo demais, tanto em termos de trabalho ( carga horária hospitalar ) quanto em termos intelectivos ( matérias muito pesadas, muito extensas, etc ). É claro que isto, hoje em dia, premido pelas políticas de “fazer-médicos-baratos” do Governo, vem mudando. Vestibular  e cursos bem mais fáceis, etc. No entanto, até há muito pouco tempo, para passar em Vestibular, passar nas matérias do curso, o estudante tinha de ser até “doente” de tão obsessivo, preocupado, centrado, focado. Enquanto todos estão aproveitando o “sol do Brasil” para a piscina, a balada  e para o futebol,  o cara tem de ser “meio doido” para ficar com a bunda na cadeira e o olho num livro chato. A obsessividade, o “excesso de energia” intelectual, excesso de vontade, excesso de foco, muitas vezes, flertam com a ansiedade, a ansiedade flerta com a obsessão, e ambas flertam com a depressão.  A depressão, por sua vez, flerta muito com estruturas biológicas bipolares, daí a alta incidência destas patologias entre os médicos e médicas.

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Na sua opinião, de forma breve, como você definiria o perfil psiquiátrico mais frequente na classe médica brasileira? Quais os principais fatores responsáveis por esse quadro?

 Como dito acima, muitos são “obsessivos”, outros são “nerds”,  alguns , sobretudo entre as mulheres, com a “mente muito ativa”, muito agitada, com muitos focos, muita “vontade de fazer”,  realizar. Portanto, só aqui já temos dois perfis diferentes, ou seja, um mais “autista”, “nerd” ( mais entre os homens ), talvez mais racional, mais distante afetivamente,  emocionalmente,  e outro perfil mais “agitado”, sobretudo feminino,  inquieto, taquipsíquico ( pensar rápido, agir muito, falar demais, sentir demais, querer demais,  etc ). É claro que esta diferença de gêneros pode ser transposta, por exemplo, muitos homens com este perfil mais “inquieto”. De qualquer forma, são pessoas que, pelos fatores acima, terão o “ego muito forte”, um “orgulho profissional”  às vezes exagerado. O tal “orgulho profissional”, muitas vezes é turbinado porque o médico, de modo geral, ao contrário de outros profissionais,  tem de “viver como médico e agir como médico” o dia todo, tem de estar lendo sobre Medicina o tempo todo, e  suas ações têm um alto impacto, tanto sobre o paciente quanto sobre a sociedade. Este “orgulho”, por sua vez, tem sido renitentemente quebrado pelas estruturas governamentais, que querem, por motivos politiqueiros,  mais um “modelo de médico-humilde-de-pés-descalços”, ou seja, um médico para trabalhar em condições precárias, ganhar pouco e atender pelo SUS.  Para isto, o Governo também tem de destruir , ou ao menos tentar destruir, toda estrutura da medicina liberal, iniciativa privada,  ou  seja , destruir  toda a medicina “fora-do-SUS”. Os médicos, dado o orgulho inerente, dado o zêlo “nerd” pela excelência de sua prática técnico-científica, dado seu desejo obsessivo pelo “fazer bem-feito”,  não têm aceitado bem este cabresto, gerando assim sérias frustrações psicológicas no âmbito profissional.

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Tivemos problemas com o Ato Médico, programa Mais Médicos, médicos cubanos sem Revalida, veto aos planos de carreira para médicos, obrigatoriedade de trabalho no SUS após a faculdade, abertura indiscriminada de vagas de medicina e muitas outras ações que prometem, mas que provavelmente não irão melhorar o cenário da saúde no país. No campo da política, o que o senhor acha que precisaria ser feito para houvesse uma real melhora na qualidade do atendimento e uma maior distribuição dos médicos no território nacional?

Tudo isto que você muito bem citou acima, Solon, decorre  daquilo que expus na questão “3” : necessidade do Governo “humilhar e baratear o médico para o SUS”, necessidade do Governo “destruir o médico e as estruturas médicas fora do SUS”.  Nossos Governos, não só o Federal, todos nós sabemos, têm uma forte tendência estatizante , e,  para tais  Governos,  o médico liberal, as estruturas médicas liberais,  são incomodativas, pois são membros “fortes” da Sociedade Civil. São membros que não se deixam curvar facilmente pelas garras do Estado. O médico , ao contrário de muitos outros profissoinais de saúde, ao contrário de muitos outros profissionais de  carreira jurídica, ainda tem muito espaço fora do Estado para desenvolver uma carreira. Portanto, não são facilmente cooptados como “escravos do contra-cheque”.  São também intelectualizados, ativos na sociedade, com um alta penetração social, pois muitos lidam com populações muito precarizadas. Em síntese, são inimigos do populismo “esquerdista”, pois apontam para a  possibilidade de excelência de uma “sociedade independente do Estado”.  Os Governos, muito inteligente que são, logo captam este “perigo médico” no ar, daí sua tentativa de humilhação, intimidação, destruição, precarização, pauperização,  banalização, difamação, deste tecido profissional.

Ao “destruir a Medicina fora do SUS”, o governo  difama a figura do médico liberal , por exemplo, abaixando muito o preço de consultas, internações,  e depois acusando o médico de atender mal. Já o médico do Governo, SUS, é igulamente difamado, pois tem de trabalhar demais, receber pouco, com muitissimo poucos recursos, estruturas superlotadas, não-resolutivas.

Como em qualquer área da vida pública, onde o Governo tenta “colocar a mão” nada dá certo, e a Medicina não seria exceção . A assistência médico-hospitalar está caótica, tanto no público quanto no privado, porque foi o Governo que impôs suas regras, suas exigências, “regulações”, etc.

A destruição da Medicina  não =estatal,  da iniciativa privada, fora do SUS segue um ritmo galopante, o país perde uma média de aproximadamente 15 leitos hospitalares por dia, segundo levantamento do TCU e Conselho Federal de Medicina.

Se o Governo ingerisse menos, não cobrasse tantos impostos, não asfixiasse tanto o setor, ficaria muito mais barato para a população pagar seu médico particular, seu hospital particular, os custos destes seriam bem menores e bem mais acessíveis. Àqueles que não pudessem  pagar sobram sempre as instituições de atendimento popular, instituições de caridade – os médicos, de modo geral, ao contrário do que propagandeia o Governo, são, sim, pessoas muito concernidas e sensibilizadas pelas necessidades sociais da população .  E se, ainda assim, sobrasse uma população desassistida, muitíssimo carente,  ( e também diminuta ) aí sim, e só nestes casos, as estruturas Governamentais poderiam subsidiar.  Só com estas simples medidas, desafogando o setor, desonerando o setor,  a assistência  médico-hospitalar explodiria em cada rincão recôndido deste país.

Agora, com o Governo a continuar controlar o timão da nau, só nos resta o soçobro e o naufrágio, o choro e o ranger de dentes.

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 Nos últimos anos nossa classe vem sendo cada vez mais difamada e perseguida pelo governo e pela mídia, resultando em crescente antipatia por parte da população. Em contrapartida, o número de vagas de medicina e a procura pelo curso também cresce cada vez mais. No que vai dar tudo isso? Como você vê o futuro da profissão no país?

A Medicina atrai muito e por vários fatores.  Muitos, evidentemente, são atraídos pelo dinheiro ( alguns médicos ainda ganham muito ) , pela oportunidade de emprego ( ainda é uma área em que há relativamente muita empregabilidade, apesar de progressivamente precária e governamental  ),  pelo glamour social e até “sexual” da profissão ( “é só falar que o cara é médico que as “mina pira”  – e outros tipos de argumentos baixos do gênero ).  Mas há também muitas “causas nobres”, por exemplo, querer ajudar, utilizar-se da ciência para o progresso e o bem-estar, utilizar-se dos estudos para aprofundar-se, mais do que por todos os modos, e ,  de fato , na condição humana, pois a Medicina oferece meios para entender-se não apenas o corpo humano, mas também a mente humana ( pois esta se manifesta e se localiza por meio do cérebro, um órgão biológico ).  É uma área fascinante porque aplica-se ciência o tempo todo, sem o “desvio de função” que se nota em outras várias áreas profissionais,  é um meio  intelectual-laboral pelo qual valoriza-se continuamente os anos de esforços científicos dispendidos numa sala-de-aula , beira de leito e à luz da biblioteca.

Há também , na Medicina, a possibilidade de ter-se pouca possibilidade de “errar de carreira”, pois a Medicina contempla desde as áreas “humanas”  ( p.ex., psiquiatria, psicologia médica, medicina social , medicina legal, etc,  ), até as áreas mais “exatas”, p.ex.,  medicina nuclear,  imaginologia, ortopedia, etc.

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Se o senhor pudesse dar um conselho a um candidato ao vestibular de medicina, ou a um jovem médico, qual seria?

Por causa das políticas catastróficas dos Governos,  em muito pouco tempo, o médico , de modo geral, estará ganhando pouco, trabalhando em condições precárias, com riscos de agressões, processos, exposição na mídia, indenizações, pressões ,    achincalhe, humilhações, acusações e achaque judiciais, pacientes,  jornalistas, promotores, etc;   e , em tempos de celular, de Facebook, de internet, sendo  vítimas de inúmeras gravações e divulgações difamatórias ( com ou sem razão ). Portanto, haverá – já estamos assistindo o começo disto – uma enorme precarização profissional e financeira da profissão. Em breve haverá não só um mas três “médicos em cada esquina”, com toda repercussão social, econômica e precarizante disto. E, de modo geral, muito mal formados, pois as estruturas públicas estão sucateadas e aos frangalhos ( do ponto de vista gerencial ) e as estruturas privadas, de modo geral,  visam puramente o lucro,  não são fiscalizadas ( p.ex., abrem-se inúmeras faculdades que nem hospital tem, algumas nem ambulatórios médicos têm )  e estão exatamente nas mãos daqueles empresários com vínculos orgânicos com o próprio Governo e com  a própria política ( por ex., quantos “donos de Faculdades” não são políticos ?  de dentro da casa dos políticos ?  com relações altamente simbióticas com os Governos ? ). 

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Encerramos aqui essa participação tão especial, e aproveitamos novamente para agradecer o senhor, por ter nos dado a honra dessa entrevista. O MeusNervos estará sempre de portas abertas, e esperamos revê-lo em breve por aqui! Muito obrigado!

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Entrevista realizada por Solon Maia,
Entrevistado: 
Dr. Marcelo Caixeta, médico psiquiatra.
Originalmente publicada em http://www.meusnervos.com.br/

 


2 respostas para “Meus Nervos entrevista – Dr. Marcelo Caixeta”

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